A nova composição do Congresso definida nas eleições do último domingo (2) indica que o próximo presidente da República chegará ao mandato sem maioria parlamentar garantida – e precisará negociar com os partidos que, até aqui, não anunciaram adesão às candidaturas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Os 10 partidos que compõem a coligação de Lula elegeram 122 deputados e 12 senadores. Somados os apoios de PDT e Cidadania no segundo turno, anunciados nesta semana, um eventual governo Lula poderia contar com 144 parlamentares na Câmara (28% do plenário) e 16 senadores (19,75%).
Bolsonaro é candidato à reeleição com uma coligação de três partidos e conseguiu conquistar um número maior de cadeiras nas duas Casas. A aliança eleitoral terá 187 representantes na Câmara dos Deputados e 24 no Senado. Com os apoios de PSC e PTB para o segundo turno, Bolsonaro reúne atualmente 194 deputados (37,8% do plenário) e 25 senadores (31%).
Grande parte dos parlamentares da próxima legislatura, no entanto, é filiada a partidos que ainda não manifestaram adesão às duas candidaturas. Os cinco maiores partidos não coligados (União Brasil, MDB, PSD, PSDB e Podemos) reúnem um terço da Câmara e quase a metade do Senado. Ao todo, serão 175 deputados eleitos e 40 senadores que, pelo cenário atual, não estarão automaticamente alinhados a Lula ou Bolsonaro.
Na prática, o fato de o partido fazer parte do governo ou da oposição não garante que toda a bancada vote de maneira uniforme. Em muitas votações no Congresso, os partidos “liberam a bancada”, ou seja, abrem mão de orientar uma posição específica.
O papel do Centrão
Para o próximo ano, o presidente eleito em segundo turno terá ainda que negociar com os partidos do chamado Centrão – grupo menos conhecido por suas bandeiras e mais pela característica de se aliar a governos diferentes, independentemente da ideologia.
O Centrão é um bloco informal na Câmara dos Deputados com partidos de direita e centro-direita que, em anos anteriores, chegaram a integrar a base de apoio dos governos de centro-esquerda de Lula e a Dilma Rousseff.
São listados frequentemente como parte do Centrão partidos como:
- PP, PL e Republicanos – os três membros originais da coligação de Bolsonaro;
- Solidariedade, Pros, PSC, Avante e Patriota, partidos de menor bancada que estão na coligação de Lula; e
- PSD, MDB e uma ala do União Brasil, três legendas que liberaram seus filiados para apoiarem Lula ou Bolsonaro.
Doutor em ciência política pela Universidade da Virgínia e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Danilo Medeiros afirma que a necessidade de construir alianças para governar é uma característica marcante dos governos pós-redemocratização.
“Isso sempre foi a tendência de todos os presidenciáveis. Normalmente, nenhuma das alianças eleitorais é traduzida em uma coalizão capaz de dar maioria e governabilidade”, diz.
Essa tentativa de construir maioria na Câmara e no Senado é o “presidencialismo de coalizão”, termo criado pelo escrito Sergio Abranches para descrever a necessidade de negociar com diferentes partidos – e abrigar seus representantes em cargos – para garantir a chamada “governabilidade”.
O cientista político vê dificuldades no horizonte para os dois postulantes ao Palácio do Planalto. Medeiros diz que, se eleito, Lula dá sinais de que repetirá o modelo consagrado na história política recente.
“Pelo que ocorreu nos governos do ex-presidente, a gente pode prever que a coalizão será formada na troca de pastas ministeriais por apoio no Legislativo. Foi um caminho adotado amplamente por todos os presidentes, com exceção do Bolsonaro”, opina.
No caso de Bolsonaro, Medeiros vê alianças mais frágeis e instáveis, mesmo considerando o advento do “orçamento secreto” – que, em vez de cargos no Executivo, distribui generosas fatias do orçamento federal por meio de emendas pouco transparentes.
“O Bolsonaro não tem coalizão de governo em nenhum momento. Ele não formou grandes bancadas de apoio. A grande reforma do período do governo Bolsonaro, a da Previdência, foi conduzida em grande parte pelas presidências das Casas. O governo Bolsonaro se recusou negociar e articular para aprovar a própria agenda. Isso fez com que o governo atual tenha a menor taxa de aprovação de alguns tipos de propostas, como medidas provisórias”, diz.
“Ainda não tem como saber qual o impacto do orçamento secreto, porque os dados são nebulosos. Mas a percepção é que isso não vai fazer com que sejam aprovadas grandes reformas constitucionais. Pode ajudar o governo a continuar operando, mas os partidos vão se sentir livres para não seguir o governo. Isso faz com que o governo não tenha uma agenda tão completa”, avalia.
PECs, impeachment e maiorias
No dia a dia do Congresso, uma maioria aliada ao governo é importante para aprovar leis e medidas provisórias – e mais importante ainda para barrar propostas que não são de interesse do governo, as chamadas “pautas-bomba”.
Quanto maior o número de votos garantidos, menor o esforço empregado para convencer o plenário a cada projeto. A depender do tipo de texto em tramitação, no entanto, a simples maioria de votos entre os presentes pode não ser suficiente. Há diferentes tipos de maioria no Congresso:
- Maioria simples: a maioria dos parlamentares presentes na sessão, sendo que as votações só começam se pelo menos metade dos deputados ou senadores tiver registrado presença. Vale para projetos de lei ordinária, decretos, resoluções e medidas provisórias
- Maioria absoluta: a maioria dos parlamentares com mandato, ou seja, 257 votos favoráveis na Câmara ou 41 votos favoráveis no Senado. A regra vale para projetos de lei complementar e para derrubar vetos presidenciais, por exemplo. Para cassar um mandato, também é necessária maioria absoluta e a votação é aberta.
- Maioria de três quintos: necessária para aprovar propostas de emenda à Constituição (PECs). Em números, significa voto favorável de 308 deputados e 54 senadores.
Há, ainda, outros quóruns e placares para situações mais específicas. Um processo de impeachment, por exemplo, precisa ser aprovado por dois terços na Câmara (342 votos “sim”), depois por maioria simples no Senado e, ao fim do julgamento, confirmado por dois terços dos senadores (54 votos).
No início de 2023, o apoio da maioria dos parlamentares ao governo influenciará uma decisão ainda mais importante: a eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado, que também exige maioria absoluta dos respectivos plenários.
Para todos os cenários, a avaliação de Danilo Medeiros é de que será difícil construir quórum para aprovar reformas enviadas por meio de PECs. A análise se baseia na aproximação entre Centrão e Bolsonaro nos últimos anos e no perfil ideológico dos parlamentares eleitos neste ano.
“Vai ser um pouco mais difícil dessa vez [em comparação com governos anteriores]. O MDB, que sempre foi fiel aos governos, diminuiu. A bancada ideologicamente próxima de Bolsonaro cresceu. A direita que foi eleita agora parece estar muito vinculada a Bolsonaro, pelo menos agora. Ainda é preciso ver o que vai acontecer com o PL, que tem um número grande de parlamentares eleitos apoiados em Bolsonaro, mas que abriga congressistas tradicionais”, diz.
“Não dá para saber como vão se comportar. A realidade é que oposição é muito duro, e ninguém gosta de ser oposição”, acrescenta.
Transição e primeiro semestre
A partir de novembro, o governo eleito terá pouco mais de três meses para negociar novas adesões de partidos antes do início do ano legislativo – em geral, na primeira semana de fevereiro.
Mesmo no caso de Bolsonaro, que busca reeleição, o período deve incluir a reacomodação de aliados em ministérios, já que nove dos 17 ex-ministros que deixaram as pastas para disputar as eleições saíram vitoriosos das urnas.
Se Lula vencer o segundo turno, a tarefa de preencher a Esplanada dos Ministérios e os cargos de articulação do governo será ainda maior. Ao longo da campanha, o candidato do PT falou em recriar ministérios para áreas como Previdência Social, Pesca e Segurança Pública, além de criar pastas “inéditas” em áreas como o direito dos povos originários.
A urgência das negociações tem relação com a importância dada ao primeiro semestre de um mandato, ainda que seja de um governo reeleito. O período é considerado crucial para aprovar temas espinhosos e reformas, antes que o capital político das urnas seja esquecido e novas insatisfações sejam criadas.
“É o que a gente chama lua de mel. O período mais forte de aproximação entre o Legislativo e o Executivo costuma ser nos 100 primeiros dias”, explica Danilo Medeiros.
Na avaliação de Medeiros, o período deve ser usado, principalmente, para fazer alianças. Os partidos que ainda não se aliaram ao governo estão com “mais vontade” de fazer parte do novo Executivo.
“É quando você precisa justamente fazer uma bancada grande, construir apoio. As incertezas são um pouco maiores, mas todo mundo quer se garantir e evitar essas incertezas. Participar do governo logo de cara, às vezes, é interessante para quem está começando, para quem começa na oposição. É um bom momento. É quando os parlamentares costumam ser mais empáticos com o Executivo”, completa.